quinta-feira, 27 de março de 2014

A RESPEITO DA RECEPÇÃO DA COMUNHÃO EUCARISTÍCA POR FIEIS DIVORCIADOS E NOVAMENTE CASADOS

O tema da recepção da Comunhão Eucarística por casais em segunda união foi levantado no dia 20 de fevereiro, durante uma conferência proferida pelo cardeal Walter Kasper, diante do colégio cardinalício, em Roma. O texto, de título "Bíblia, Eros e família" [1], propõe soluções que causaram polêmica nos últimos dias. Dentro dessa polêmica, inclui-se a oposição que o cardeal Raymond Burke manifestou ao discurso de Kasper [2], além da insatisfação apresentada por muitos outros prelados ainda durante o consistório [3].

Não é a primeira vez que essa questão é alvo de debate por parte de teólogos e purpurados. Tanto é verdade que, em 1998, o cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, fez a introdução de um livro com o título "Sobre a pastoral dos divorciados recasados", publicado pela Libreria Editrice Vaticana em uma coleção do dicastério ("Documenti e studi", 17). O texto, que em 2011 foi republicado por L’Osservatore Romano [4], servirá de guia para esta aula.

Para sintetizar o conteúdo do documento, Ratzinger resume as posições contrárias ao Magistério da Igreja em cinco principais argumentos.

O primeiro deles diz respeito a uma possível exceção apresentada pelo próprio Evangelho às palavras de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimônio:
Muitos defendem, baseados em algumas passagens do Novo Testamento, que as palavras de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimônio permitam uma aplicação flexível e não possam ser classificadas em uma categoria rigidamente jurídica.

Alguns exegetas recordam criticamente que, com relação à indissolubilidade do matrimônio, o Magistério citaria exclusivamente uma única passagem – ou seja Marcos 10, 11-12 – e não consideraria de forma adequada outras passagens do Evangelho de Mateus e da Primeira Carta aos Coríntios. Estas passagens bíblicas mencionariam algumas "exceções" da palavra do Senhor sobre a indissolubilidade do matrimônio, e isto no caso da pornèia (Mateus 5, 32; 19, 9) e no caso da separação por motivo da fé (1 Coríntios 7, 12-16). Tais textos seriam indicações de que os cristãos em situações difíceis teriam conhecido, já desde os tempos apostólicos, uma aplicação flexível das palavras de Jesus.
A esta objeção deve-se responder que os documentos magisteriais não pretendem apresentar de modo completo e exaustivo os fundamentos bíblicos da doutrina sobre o matrimônio. Eles deixam esta importante tarefa aos especialistas competentes. O Magistério enfatiza porém que a doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimônio deriva da fidelidade diante das palavras de Jesus

Com relação à reta compreensão das clausulas sobre a pornèia existe uma vasta literatura com muita hipóteses diferentes, até mesmo contrastantes. Entre os exegetas não há absolutamente unanimidade sobre esta questão. Muitos defendem que se trate aqui de uniões matrimoniais inválidas e não de exceção à indissolubilidade do matrimônio. Seja como for, a Igreja não pode edificar a doutrina e a sua praxe encima de uma hipótese exegética incerta. Ela deve se ater ao ensinamento claro de Cristo. [5]
O segundo argumento comumente apresentado oferece como referência as palavras dos primeiros Padres da Igreja. Alguns deles tiveram uma opção pastoral diferente à questão? Não se sabe, já que existem contextos históricos muito diferentes, além dos textos serem muitas vezes obscuros. O próprio Kasper, em sua conferência, diz que, "como ocorre muitas vezes, nos detalhes históricos de questões semelhantes, há controvérsias entre os especialistas" [6].

Só que essa não é simplesmente uma questão de acordo entre os especialistas, como também de competência: o responsável por definir a fé e a disciplina da Igreja não são os Santos Padres, mas o Magistério eclesiástico. E este sempre foi unânime em sua doutrina e em sua prática, mesmo na Igreja primitiva:
Na Igreja do tempo dos Padres os fieis divorciados recasados nunca foram admitidos oficialmente à sagrada comunhão depois de um tempo de penitência [7].

Mesmo sabendo-se que soluções pastorais análogas foram propostas por alguns Padres da Igreja e entraram em alguma medida também na prática, contudo elas jamais obtiveram o consenso dos Padres e de nenhum modo vieram a constituir a doutrina comum da Igreja nem a determinar a sua disciplina. Compete ao Magistério universal da Igreja, na fidelidade à Escritura e à Tradição, ensinar e interpretar autenticamente o depositum fidei [8].
As "exceções" que existem nesse campo aconteceram na Igreja do Oriente, que "procurou, por causa do entrelaçamento cada vez mais forte de Estado e Igreja, uma maior flexibilidade e disponibilidade à negociação em situações matrimoniais difíceis". No entanto, adverte Ratzinger, isso "não é de forma alguma conciliável com as palavras de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimônio". Mais: não há nenhum fundamento patrístico por trás dessa realidade, mas tão somente "uma interpretação cada vez mais liberal (...) de algumas passagens obscuras dos Padres" [9].

Essa interpretação liberal vem sendo realizada de modo desonesto por supostos especialistas. Um deles é o padre genovês Giovanni Cereti, cujo livro Divorzio, nouve nozze e penitenza nella Chiesa primitiva [10] vem sendo alardeado como prova de que os Padres da Igreja não eram tão "bitolados" como a Igreja de hoje. Porém, em seu livro, Cereti, ao invés de proceder com método histórico e imparcialidade, prefere usar textos obscuros e silêncios dos Santos Padres para sustentar as teses que ele já havia estabelecido como verdadeiras. Até o Concílio de Niceia é usado para justificar suas teses. O padre Henri Crouzel, um renomado patrólogo jesuíta, denunciou a farsa da obra de Cereti em dois artigos publicados na revista Augustinianum [11], dos quais se recomenda a leitura.

O terceiro argumento a que Ratzinger faz referência diz respeito a dois princípios, a epikèia [12] e a æquitas canonica, pelas quais uma pessoa poderia ser dispensada de cumprir uma "norma geral" para seguir "uma decisão de consciência". Porém, Ratzinger explica que, mesmo sendo "de grande importância no âmbito das normas humanas e puramente eclesiais", tais ferramentas "não podem ser aplicadas no âmbito de normas sobre as quais a Igreja não possui nenhum poder discricional", "normas que têm sua origem no próprio Senhor e que por isto são designadas como de ‘direito divino’" [13]. Ou seja, existem leis colocadas claramente por nosso Senhor Jesus Cristo de que nem a Igreja, nem o Papa, nem um Concílio podem prescindir – e a indissolubilidade do matrimônio é uma delas.

O quarto argumento evoca o Concílio Vaticano II – ou, mais propriamente, um malfadado "espírito do Concílio" – para tentar justificar uma visão subjetivista do matrimônio. O Magistério dos papas pós-conciliares teria representado uma involução em relação à doutrina apresentada pela Gaudium et Spes [14]. Ratzinger mostra, ao contrário, que o Concílio está em perfeita continuidade com a Tradição da Igreja e com o Magistério que o antecede e sucede:
É inadequado introduzir uma contraposição entre a visão personalística e a jurídica do matrimônio. O Concílio não rompeu com a concepção tradicional do matrimônio, mas a desenvolveu ainda mais. Quando, por exemplo, se repete continuamente que o Concílio substituiu o conceito estritamente jurídico de "contrato" com o conceito mais amplo e teologicamente mais profundo de "pacto", não se pode esquecer a este respeito que também no "pacto" está contido o elemento do "contrato", embora esteja colocado numa perspectiva mais ampla. [15]
Por fim, o quinto argumento sintetizado por Ratzinger recorre a uma suposta solução pastoral, que se contraporia à prática atual da Igreja, considerada "unilateralmente normativa". Alega-se "que a linguagem dos documentos eclesiais seria demasiado legalística" e "que a dureza da lei prevaleceria sobre a compreensão de situações humanas dramáticas" [16].

Entretanto, é preciso que nos questionemos: temos certeza de que essa proposta – de admitir à Comunhão os casais em segunda união – é um remédio? Ou, antes, ela não é um veneno, que levará à perdição das almas? As pessoas repetem, muitas vezes, que a Igreja não tem o direito de "julgar", como se, negando a Eucaristia aos recasados, ela estivesse os condenando ao inferno. Mas, na verdade, a Igreja nunca fez esse tipo de raciocínio. Quem diz se uma pessoa vai ou não para o inferno é Deus, somente. A única coisa que a Igreja diz é: alguém em estado objetivo de pecado mortal não pode receber Jesus Eucarístico. O que vai condenar ou salvar uma pessoa, por outro lado, é a sua situação subjetivamente considerada – que só Deus pode avaliar. Como diz um documento de 1994, da Congregação para a Doutrina da Fé, "esta norma não tem, de forma alguma, um caráter punitivo ou então discriminatório para com os divorciados novamente casados, mas exprime antes uma situação objetiva que por si torna impossível o acesso à comunhão eucarística" [17]. E ainda: "Na ação pastoral, dever-se-á realizar todo o esforço para que seja bem compreendido que não se trata de nenhuma discriminação, mas apenas de fidelidade absoluta à vontade de Cristo que restabeleceu e de novo nos confiou a indissolubilidade do matrimônio como dom do Criador" [18].

Na mesma linha desse quinto argumento, algumas pessoas pedem um abrandamento da lei moral da Igreja dizendo que "o homem de hoje não seria mais capaz de compreender esta linguagem" [19]. Mas, o cardeal Kasper, em sua conferência, sublinha que os próprios discípulos ficaram chocados com a afirmação de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimônio: "Os discípulos se assustam com essa afirmação. Consideram-na como um ataque inaudito à concepção do matrimônio do mundo que os circunda, além de uma pretensão impiedosa e excessiva" [20]. Tanto é verdade que, depois do que Ele lhes tinha dito, eles exclamaram: "Se tal é a condição do homem a respeito da mulher, é melhor não se casar!" [21]. Ou seja, já naquela época a doutrina da Igreja foi recebida com resistência e dificuldade pelas pessoas, isso não é uma exclusividade deste século, nem desta cultura. Se hoje a Igreja perde fiéis por causa dessas mesmas palavras, é simplesmente sinal de que ela está seguindo os passos de seu divino Fundador.

Com isso, não se insinua que a Igreja deva afastar as pessoas da Comunhão. O Papa Francisco, em sua recente exortação apostólica, escreve que "a Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos" [22]. Com isso, o Santo Padre corrobora, por exemplo, o seu predecessor, São Pio X, grande defensor da comunhão frequente. Em um decreto de 1905, o Papa Sarto escrevia que "a quem comunga freqüente e diariamente convém muitíssimo fugir dos pecados veniais", mas, para fazê-lo, "basta estar isento do pecado mortal, com o propósito de não voltar a cair nele". E concluía que "este propósito, quando é sincero, não pode fazê-lo quem comunga todos os dias sem que pouco a pouco venha a perder o afeto às culpas veniais" [23]. A chave para interpretar as declarações pontifícias, como a do Papa Francisco, acima exposta, é a continuidade com o Magistério de sempre.

Com base no mesmo documento do Papa Pio X, o padre Royo Marín elenca cinco condições para a recepção frequente e até mesmo diária da Eucaristia:
a) estado de graça; b) reta intenção (ou seja, que não se comungue por vaidade ou rotina, mas para agradar a Deus); c) é muito conveniente estar limpo dos pecados veniais, mas não é absolutamente necessário: a comunhão ajudará a vencê-los; d) recomenda-se a diligente preparação e ação de graças; e) deve proceder-se com o conselho do confessor [24].
Essa é a disciplina atual da Igreja. Não há porque "forçar a barra", por meio de uma "caridade desordenada", propondo como saudável algo que pode, na verdade, prejudicar a saúde da alma. É claro que a Eucaristia é um verdadeiro alimento, mas, diferentemente do alimento comum, que é assimilado pela pessoa, no alimento eucarístico é o comungante que é assimilado a Cristo. Então, deve-se perguntar se as pessoas estão realmente prontas para isso ou se não devem, antes, passar por um sério processo de conversão – pelo qual, de fato, todos devem passar.

Essa é a disciplina atual da Igreja. Não há porque "forçar a barra", por meio de uma "caridade desordenada", propondo como saudável algo que pode, na verdade, prejudicar a saúde da alma. É claro que a Eucaristia é um verdadeiro alimento, mas, diferentemente do alimento comum, que quem se alimenta assimila, no alimento eucarístico é o comungante que é assimilado a Cristo. Então, deve-se perguntar se as pessoas estão realmente prontas para isso ou não devem, antes, passar por um sério processo de conversão – pelo qual, de fato, todos devem passar.

Nesse aspecto, o argumento do cardeal Kasper de que seria absurdo que "quem recebe a comunhão espiritual", sendo "uma coisa só com Jesus Cristo", não possa "receber também a comunhão sacramental" [25], não passa de um silogismo falso. Porque a "comunhão espiritual", stricto sensu, não significa necessariamente estar em plena comunhão com Deus; trata-se de uma devoção que mostra o quanto se desejaria receber a Comunhão. Está-se diante da falácia do termo médio com duplo sentido: quem recebe a comunhão espiritual não é necessariamente "uma coisa só com Jesus Cristo".

Outra proposição de Kasper, de que os bispos poderiam confiar a tarefa de dirimir as questões de nulidade matrimonial "a um sacerdote com experiência espiritual e pastoral como penitenciário ou vigário episcopal" [26], ao invés dos tribunais eclesiásticos, já foi respondida pela Santa Sé. Como reconheceu o próprio Kasper, "o matrimônio, como sacramento, tem caráter público". Deste modo, "o consentimento, pelo qual é constituído o matrimônio, não é uma simples decisão privada, visto que cria para cada um dos esposos e para o casal uma situação especificamente eclesial e social" [27]. Rebater uma realidade de caráter público com uma "simples decisão privada" não seria ocasião justamente para o escândalo que a Igreja pede que seja evitado nessa matéria [28]?

Para encerrar esta longa aula ao vivo, é importante destacar o problema de fundo do discurso do cardeal Walter Kasper. Fomentar a ideia de que seja possível dar a comunhão a recasados é realmente nocivo, como destacou o cardeal Burke, em entrevista à EWTN: "Penso que isto poderia potencialmente criar bastante desilusão (...). Este texto [do cardeal Kasper] está sendo cada vez mais usado, como uma espécie de instrumento de campanha para pessoas que creem erroneamente que a disciplina da Igreja a este respeito poderia mudar – eu espero que o erro desta abordagem se torne cada vez mais claro". Ao invés de propor soluções impossíveis, vale escutar as palavras sempre atuais do cardeal Joseph Ratzinger: "Certamente a palavra da verdade pode machucar e incomodar. Mas é o caminho para a cura, para a paz, para a liberdade interior" [29].
Padre Paulo Ricardo

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