sexta-feira, 6 de setembro de 2013

UM DEUS QUE FALA

A Palavra de Deus é concreta
O Deus bíblico é um Deus que fala. "Fala o Senhor, o Deus dos deuses [...] e não se calará" (Sl 50,1-3). O Senhor mesmo repete infinitas vezes na Bíblia: "Ouve, meu povo, deixa-me falar" (Sl 50,7). Nisso a Bíblia vê a mais clara diferença dos ídolos, que "têm boca e não falam" (Sl 115,5). Deus serviu-se da Palavra para comunicar-se com as criaturas humanas.

Contudo, que significado devemos atribuir a expressões tão antropomórficas como "Deus disse a Adão", "assim fala o Senhor", "diz o Senhor", "oráculo do Senhor" e outras semelhantes? Trata-se evidentemente de um falar diferente do humano, um falar aos ouvidos do coração. Deus fala como escreve! "Colocarei a minha lei no seu coração, vou gravá-la em seu coração", diz o profeta Jeremias (Jr 31,33). Ele escreve no coração e também suas palavras, Ele as faz ressoarem em você. Ele próprio o afirma expressamente por meio do profeta Oseias, falando de Israel como de uma esposa infiel: "Pois, agora, eu é que vou seduzi-la, levando-a para o deserto efalando-lhe ao coração" (Os 2,16).

Insiste-se, por vezes, em um falar quase material e externo de Deus: "Então, o Senhor vos falou do meio do fogo. Ouvíeis o som das palavras, mas não enxergáveis figura alguma, só havia uma voz!" (Dt 4,12; cf. At 9,7). Entretanto, também nestes casos trata-se da dramatização de um evento interior e espiritual, em todo caso, de um falar diferente do humano. 
Deus não tem boca nem fôlego humanos: Sua boca é o profeta e Seu sopro o Espírito Santo. "Tu serás a minha boca", diz Ele próprio a Seus profetas, ou ainda, "porei minha palavra sobre teus lábios". É o sentido da célebre frase: "Foi sob o impulso do Espírito Santo que pessoas humanas falaram da parte de Deus" (2Pd 1,21). A tradição espiritual da Igreja cunhou para este modo de falar diretamente à mente e ao coração a expressão "locuções interiores".

Todavia, trata-se de um falar em sentido verdadeiro; a criatura recebe uma mensagem que pode traduzir em palavras humanas. É de tal modo vívido e real o falar de Deus que o profeta recorda com precisão o lugar e o tempo em que certa palavra "veio" sobre ele: "No ano em que morreu o rei Ozias" (Is 6,1), "No trigésimo ano, no dia cinco do quarto mês, encontrava-me eu entre os exilados, junto ao rio Cobar" (Ez 1,1), "No dia primeiro do sexto mês do segundo ano do rei Dario" (Ag 1,1).

A Palavra de Deus é tão concreta que a respeito dela é possível dizer que "cai" sobre Israel, como se fosse uma pedra: "O Senhor lançou uma ameaça a Jacó, ela caiu sobre Israel" (Is 9,7). Em outras vezes, a mesma concretude e materialidade é expressa não com o símbolo da pedra que fere, mas do pão que se come com gosto: "Bastava descobrir tuas palavras e eu já as devorava, tuas palavras para mim são prazer e alegria do coração" (Jr 15,16; cf. também Ez 3,1-3).

Nenhuma voz humana atinge profundamente o homem como a Palavra de Deus. "[A Palavra de Deus] penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração" (Hb 4,12). Por vezes, o falar de Deus "se faz ouvir com força... corta os cedros do Líbano" (Sl 29,4-5), ao passo que em outras vezes assemelha-se ao "murmúrio de uma leve brisa" (1Rs 19,12). Conhece todas as tonalidades do falar humano. 
Pe. Raniero Cantalamessa
Franciscano capuchinho e pregador da Casa Pontifícia

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